Claudia Lage
Às vezes, eu costumava matar aula no colégio para ir ao cinema,
outras vezes, vejam só, para ir à biblioteca da escola mesmo. Foi
estranho quando, um dia, o meu professor de literatura da época me
encontrou numa dessas vezes entre as estantes, procurando um livro.
Naquela hora, na minha turma, era a aula dele. Por algum motivo, ele
precisou deixar a sala e ir à biblioteca rapidamente. Teve um espanto ao
me ver ali. Não sei se por que eu matava a sua aula, ou por que fazia
isso na biblioteca, com um livro nas mãos. Ele me olhava e olhava o
livro. Ia e voltava com os olhos, perplexo. Eu não soube, por um
instante, se devia justificar a minha ausência na sala ou o fato de ter
escolhido um lugar cheio de livros para faltar à aula de literatura.
Quando enfim comecei a gaguejar alguma coisa, ele se afastou,
transtornado, e saiu, mas não antes de olhar mais uma vez o livro que eu
tinha nas mãos, com evidente ressentimento.
Eu havia cometido algum delito grave para aquele professor. O fundo
em meu estômago dizia isso. Não podia ser só a aula. Outros alunos
também a matavam de vez em quando, e ele depois lhes chamava à atenção
com uma seriedade divertida e irônica. Nada de perplexidades
constrangidas. Olhares graves e ressentidos. Aquela reação perturbadora
ele havia reservado apenas para mim. Mas, tampouco, devia ser a
biblioteca, ou era? O livro suava em minhas mãos, assumindo talvez a
culpa. Levei-o para casa, apertando-o em meu peito. Éramos cúmplices,
nós dois, de um ato horrível e misterioso contra o professor. Naquela
noite, tive pesadelos. Os olhos do professor tomavam inteiramente o seu
rosto, e me enfrentavam indignados e ofendidos.
Na aula seguinte, tentei me comportar da melhor maneira possível. Não
passei o tempo olhando para a janela, como costumava fazer, em busca de
um horizonte qualquer. Nem me distraí com rabiscos, desenhos e frases
inúteis no caderno. Fixava o professor com atenção exagerada, tentando
absorver e compreender tudo o que ele dizia sobre o estilo de época
Arcadismo, anotando
bucolismo e
pastoralismo com
caligrafia exemplar, e assentindo com a cabeça toda a vez que seus olhos
passavam por mim e não me viam. Ao contrário do meu pesadelo, o
professor não me olhava mais. Era dessa forma retraída que ele lidava
com o ressentimento. Eu, por outro lado, assumia todas as culpas na
medida em que ele silenciosamente me acusava. No corredor, evitava
cruzar comigo, e se me via no pátio lendo um livro, como eu gostava de
fazer, mudava de direção como se estivesse diante de um obstáculo
intransponível. Era sempre à noite, na escuridão da insônia, que eu
ruminava as atitudes do professor e repassava a matéria. Romantismo:
nacionalismo,
exaltação do eu. Realismo:
racionalismo,
crítica social. Não sei por que, naquele dia, eu achei que ele tremera um pouco durante a aula, a voz rasgando a garganta, ao dizer,
crítica social.
Semanas depois, eu percebi: o professor não fazia mais a barba,
engordava, e, como se não tivesse mais nada a fazer, envelhecia. Se
antes não era alegre nem triste, agora não era, simplesmente. Entrava na
sala de aula resignado, dizia algumas coisas, escrevia outras, para
depois desaparecer. A sua apatia era tão grande que um dia ele deve ter
se esquecido de que sua presença era aguardada e realmente desapareceu.
“Viajou”, explicou a diretora, como se o fato de alguém ir de um lugar
para o outro explicasse tudo. E assim os anos se passaram sem notícias
do professor.
Nos encontramos anos depois, por acaso, numa livraria. Eu a
frequentava sempre, e não sabia que, desde que entrei pela primeira vez
ali, era observada pelo professor. Já sentia o livro suando em minhas
mãos, quando ele me cumprimentou, perguntando se eu era eu, a sua aluna.
Sim, confirmei. Ele me olhava e olhava o livro, como nosso constrangido
encontro na biblioteca da escola. De repente, me abraçou, com uma
gratidão que eu não pude entender. Mas, em seguida, o professor foi de
uma claridade imprevista, de fechar os olhos. Uma de suas alegrias era
me ver ali em sua livraria, ele disse. E sorriu, confirmando, sim, sou
livreiro. E pegando um livro, levou-o ao peito. A capa sobre o coração,
enquanto ele confirmava a satisfação de ver que eu continuava a gostar
de ler, apesar de suas aulas. Aquele dia na biblioteca ressurgiu então
entre nós. Me ver matar a aula de literatura para ler foi a gota d’água
para o professor. Havia passado a noite anterior preparando uma aula de
literatura, elencando, não poetas e escritores, seus textos e suas
poesias, mas características, datas e nomes que os alunos não podiam
deixar de saber, porque ia cair na prova, porque estava no currículo do
semestre. Às vezes, conseguia uma aula ou outra para os textos, mas era
pouco, muito pouco. Até me ver na biblioteca, o professor me julgava uma
aluna desinteressada e desinteressante, daquelas que não se avista o
futuro. Não me imaginava abrindo um livro, como podia supor que eu era
uma leitora? Mas eu era, e, para ele, havia sido como um marido, que
sempre considerara a esposa frígida, descobrir que ela tem um amante.
Eu, que já tinha idade e altura para sorrir dessa imagem, sorri,
profundamente feliz. O professor abraçava o livro, apaixonado. Contou
que um dia, se levantou da cama, se arrumou para ir trabalhar, saiu de
casa, mas, em vez de ir à escola, foi para uma livraria. No dia
seguinte, pediu demissão. Juntou dinheiro, conseguiu um empréstimo e
abriu uma pequena livraria, que se expandira em outras. “Eu queria estar
perto dos livros”, explicou. “Antes, eu achava que podia ser professor
de literatura impunemente”, disse. O professor entrara na escola cheio
de esperanças de mudar o modo em que é feito o ensino da literatura, de
driblar, dia a dia, o sistema. Mas foi ao contrário, era o sistema que
estava, pouco a pouco, mudando o professor, encurralando-o numa sala
escura.
“Até te ver na biblioteca, eu não tinha a real consciência da
dimensão do que eu fazia. A cada aula, eu matava um livro. A cada aula,
um leitor morria.”
A escritora Claudia Lage é formada em literatura e dedicou muito tempo ao teatro. Autora, entre outros, do romance Mundos de Eufrásia.